16 de mar. de 2008

Retórica de integração e prática de fragmentação

Por Farlei Martins Riccio

Juan Gabriel Tokatlian, sociólogo argentino, em entrevista ao jornal Folha de São Paulo (Lógica da "guerra contra o terror" ameaça democracias latino-americanas, 10.03.08), comenta a crise desatada pela operação colombiana que matou o número 2 das Farc em território equatoriano. A crise política, em sua opinião, coloca a América Latina em uma encruzilhada: ou incorpora os paradigmas da "guerra ao terror", que privilegia a abordagem militar do problema do paramilitarismo - da guerrilha ao crime organizado -, ou decide que se manterá dentro das regras do Estado de direito.

Segundo Tokatlian, o que ocorreu tem três faces. A primeira, fundamental, é que se produziu um ato violento, que afetou as relações interamericanas, significou uma violação do direito internacional e vai ter profundas repercussões futuras. Provavelmente se instalou aqui definitivamente a noção da guerra contra o terrorismo, que era mais própria do Oriente Médio, da Ásia Central, do Chifre da África etc. Em segundo lugar, no campo específico da Colômbia, o que se produziu foi menos o exercício de um presidente que seguia exigências de Washington e muito mais a oportunidade política interna de dar às Farc um golpe demolidor: “Provavelmente estamos em um ponto de inflexão muito significativo da confrontação armada na Colômbia. Por isso, para grande parte da população colombiana, a ação foi percebida como uma vitória. Mas ela foi conseguida por meio de um instrumento ilegal e ilegítimo do ponto de vista latino-americano.” O terceiro ponto - e nisso o mais afetado é o Brasil - é que desmoronou a noção de que a América Latina ia a caminho da união sul-americana. Para o sociólogo argentino, esse projeto, que o Brasil em particular defende tanto, caiu como um castelo de cartas. "A América do Sul não pôde se antecipar a isso, nem evitar que se rompessem relações entre países, nem conseguiu que a solução seja segura e definitiva. Aqui há cada vez mais retórica de integração e prática de fragmentação."

Esse terceiro aspecto da entrevista de Juan Gabriel Tokatlian merece nossa atenção.

Como se sabe, o MERCOSUL – Mercado Comum do Sul, instituído pelo Tratado de Assunção de 1991 (promulgado no Brasil pelo Decreto n. 350/91, sendo que a estrutura institucional foi aprovado com o Protocolo de Ouro Preto, de 17/12/94, promulgado no Brasil pelo Decreto n. 1901/96), objetiva a formação de livre comércio, seguida de uma união aduaneira, mediante o estabelecimento de uma tarifa externa comum, para finalmente formar um verdadeiro mercado comum, permitindo o livre movimento de mercadorias, serviços, pessoas e capital, sem aplicar barreiras alfandegárias e não alfandegárias em geral. Ademais, pretendendo um elevado grau de integração, os países membros do Mercosul aspiram a desenvolver organizações comunitárias, uma política macroeconômica e, inclusive, uma moeda comum.

Como ocorreu com a União Européia, dificuldades para a efetiva integração dos países da América Latina num mercado comum são apontadas pelos estudiosos do direito comunitário.

Assim reporta Manuel Carlos Lopes Porto (Teoria da Integração e políticas comunitárias: Coimbra: Almedina, 1997, p. 207): “As diferenças de dimensão dificultarão aliás o aprofundamento institucional, sendo designadamente difícil a formação de um Parlamento ou de um Tribunal quando um dos países tem 160 milhões de habitantes, um outro 33 milhões e os outros dois pouco mais de 3 milhões cada. Com uma representação mais ou menos proporcional a participação destes não teria significado e uma participação paritária levaria a uma subrepresentação inaceitável dos cidadãos do Brasil, com uma população quatro vezes superior à dos outros três em conjunto. Põe-se deste modo um problema de desequilíbrio (é muito menor na União Européia, havendo mais países e não chegando o país mais populoso, a Alemanha, a ter um quarto da população total) que justifica que a via a seguir tenha vindo a ser a da inter-governabilidade.”

Para José Angelo Faria (O Mercosul: princípios, finalidades e alcance do Tratado de Assunção. Brasília:1993) há uma indefinição de objetivos facilmente constatável e que permeia todo o Tratado de Assunção. “Fala-se em ‘mercado comum’ e em ‘reciprocidade’, quando se sabe serem de difícil conciliação. Propõem-se as partes a atingir metas ambiciosas, estipulando prazos que tornam quase impossível a sua execução tempestiva. Essa falta de clareza a cerca dos propósitos talvez se deva à diversidade de inspiração na redação de partes distintas do Tratado, para o qual se recorreu ora ao GATT, ora ao Tratado de Roma, ora ao Tratado de Montevidéu de 1980, circunstância que pode dificultar consideravelmente o trabalho do intérprete. (...) Inexiste uma organização internacional denominada Mercado Comum do Sul, o que cria certas dificuldades para a compreensão dos avanços posteriores ao Tratado de Assunção.”

E, por fim, assevera o referido autor:

“(...) Fiel ao individualismo que caracteriza as relações entre os países latino-americanos e impregnado da noção exclusivista de soberania nacional, o Tratado não outorga o exercício de nenhuma fração dos direitos de soberania dos Estados Partes aos órgãos por ele instituídos. (...) A sistemática de solução de controvérsias, introduzida pelo protocolo de Brasília, de 17 de dezembro de 1991, nesse contexto, pode ser interpretada como um indicativo positivo de uma postura mais benevolente para com a supranacionalidade que necessariamente deve acompanhar um processo de integração.”

Além das dificuldades acima citadas, a crise política envolvendo Venezuela, Equador e Colômbia, afeta diretamente o avanço do Mercosul para integração de outros países latino-americanos no mercado comum, já que a tendência beligerante das ideologias contrapostas nesses países acaba por contrariar o princípio fundamental da solidariedade entre os Estados membros, também denominado pela doutrina alemã de princípio da lealdade comunitária, que visa impedir a adoção de medidas unilaterais pelos partícipes da comunidade, contrariando normas ou mesmo interesses comunitários. (Dromi, Ekmekdjan e Rivera, Derecho Comunitario. Buenos Aires, 1995, p. 53/56).

Diagnóstico semelhante foi dado por Alexandre Demidoff no blog Teoria do Estado e Globalização: “Em um mundo no qual os países estão cada vez mais internacionalizados, em que formam-se blocos de atuação política poderosos como a União Européia, a América-Latina parece ainda dominada por ideologias de meados do século XX, ideologias essas que acabam por produzir pontos de tensão e alinhamentos perigosos, acabam também criando uma visão maniqueísta da política, formando um campo fértil para o surgimento de conflitos. A falta de uma percepção que governe a interdependência conforme alerta Antônio Negri pode levar os países latino-americanos a um isolacionismo perigoso que nem mesmo os mais poderosos Estados da atualidade globalizada se dão ao luxo de sustentar, dada sua lógica inviabilidade.”

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