23 de fev. de 2008

Combate à dengue e poder de polícia

Por Farlei Martins Riccio

Com a finalidade de combater o mosquito transmissor da dengue, o Governo do Rio de Janeiro enviará à Assembléia Legislativa projeto de lei autorizando os agentes de saúde a entrarem, se preciso à força, com a ajuda de chaveiros e policiais, em imóveis abandonados ou naqueles cujos moradores não permitirem a visita. Quem resistir poderá ser multado de R$ 200 a R$ 20 mil, dependendo da gravidade do caso e do tipo de imóvel (comercial ou residencial). Antes, porém, os proprietários serão notificados por um aviso na porta. Quando forem detectadas situações que permitem a proliferação do mosquito e o morador recusar a tomar medidas para resolver o problema, a multa poderá chegar a R$ 200 mil. (Chave mestra contra a dengue. O Globo, 23.02.2008).

Para Cláudio Pereira de Souza Neto, especialista em direito constitucional, a proposta é inconstitucional, pois fere o princípio da inviolabilidade do lar. Na sua avaliação, a medida só seria legal num caso: se a residência estiver abandonada.

Apesar de não conhecer o projeto de lei na íntegra, entendo que a medida revela-se perfeitamente legítima.

Como se sabe, o caso concreto revela o exercício do poder de polícia pela Administração Pública. Segundo o doutrinador português Marcelo Caetano (Princípios Fundamentais de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1989) poder de polícia “é o modo de atuar da autoridade administrativa que consiste em intervir no exercício das atividades individuais suscetíveis de fazer perigar interesses gerais, tendo por objeto evitar que se produzam, ampliem ou generalizem os danos sociais que a lei procura prevenir.”

Costuma-se afirmar que o poder de polícia pode ser entendido como o conjunto de normas impostas pela autoridade pública aos cidadãos, seja no âmbito da vida normal, diária, seja no exercício de atividade específica. Denomina-se polícia, por outro lado, o conjunto dos atos das leis e regulamentos. Em um terceiro sentido, polícia é o nome que se reserva às forças policiais, encarregadas da execução das normas jurídicas, e cuja atividade resulta a manutenção da ordem pública. Os dois primeiros sentidos correspondem ao conceito de poder de polícia em sentido amplo e poder de polícia em sentido estrito. (Celso Antônio Bandeira de Mello, Apontamentos sobre o Poder de Polícia. Revista de Direito Público n. 9/55-68). Dessa forma, o poder de polícia é prerrogativa que se reparte entre o Legislativo (limitações administrativas) e o Executivo (atos administrativos de polícia).

Quanto aos seus atributos específicos, a doutrina costuma identificar no poder de polícia cinco elementos indissociáveis de seu regime jurídico: discricionariedade, auto-executoriedade, coercibilidade, atividade estatal negativa e preventiva. No entanto, tais atributos devem ser considerados com reservas, especialmente a auto-executoriedade e a coercibilidade. Diante da própria evolução do Estado, nem todos os atos ou medidas de polícia os possuem (heteroexecutoriedade), bem como a vinculação do Estado ao regime democrático e de direito lhe impõe observar os princípios inerentes à salvaguarda dos direitos fundamentais e dos princípios da juridicidade e da proporcionalidade. É por essa razão que Agustín Gordillo sustenta a abolição da noção ‘poder de polícia’, pois segundo o doutrinador argentino, os atributos em questão decorrem da noção que detinha o poder de polícia no Estado liberal e que não mais se compatibiliza com o Estado democrático de direito dos dias atuais. (Tratado de Derecho Administrativo. Buenos Aires: FDA, 2003)

De outro lado, afirma com propriedade Celso Antônio Bandeira de Mello que a auto-executoriedade somente será legítima no contexto do Estado democrático em três diferentes hipóteses: i) quando a lei expressamente autorizar; ii) quando a adoção da medida for urgente para a defesa do interesse público e não comportar as delongas naturais do pronunciamento judicial, sem sacrifício ou risco para a coletividade; iii) e quando inexistir outra via de direito capaz de assegurar a satisfação do interesse público que a Administração está obrigada a defender em cumprimento à medida de policia.

Denota-se, portanto, que as três situações fáticas necessárias para o exercício legal do poder de polícia no Estado contemporâneo estão presentes no projeto de lei em questão.

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