14 de mar. de 2008

Jurisprudência comentada: direito urbanístico e espaço público

Por Farlei Martins Riccio

O processo de rápida urbanização pelo qual passaram os países da América Latina desde o século passado tem transformado estruturalemente os países do continente em termos territoriais, socioeconômicos, culturais e ambientais. Segundo Edésio Fernandes, a América Latina é hoje a região mais urbanizada do mundo em desenvolvimento, com 75% da população vivendo em cidades. No Brasil, a taxa de crescimento urbano tem aumentado exponencialmente. Em 1960, do total de 31 milhões de brasileiros, 44,7% viviam em áreas urbanas e 55,3% viviam em áreas rurais. Em 1970, 55,9% dos brasileiros viviam em áreas urbanas. Em 2000, da população total de 170 milhões, 81,2% viviam em áreas urbanas e apenas 18,8% viviam em áreas rurais. Tal processo de urbanização agrega problemas de exlcusão social, segregação espacial e impactos socioambientais. Como resultado: 26 milhões de brasileiros que vivem em áreas urbanas não têm água em casa; 14 milhões não são atendidos por sistema de coleta de lixo; 83 milhões não estão conectados a sistema de saneamento; e 70% do esgoto coletado não é tratado, mas jogado em estado bruto na natureza. Complexo e multidimensional, esse processo de segregação socioespacial deve-se a uma combinação histórica de diversos fatores como as dinâmicas formais e informais do mercado de terras; centralização político-institucional; autoritarismo político-social; burocratização político-administrativa; estrutura fundiária concentrada e privatista; natureza elitista do planejamento urbano; renovação das práticas seculares de clientelismo político e corrupção endêmica. (A nova ordem jurídico-urbanística no Brasil. in FERNANDES, Edésio e ALFONSIN, Betânia (coord.) Direito Urbanístico. Estudos brasileiros e internacionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 03-23).

Dos países da América Latina, Brasil e Colômbia têm avançado mais rapidamente na concretização de reformas legislativas e político-institucionais com o intuito de definir um marco regulatório de democratização das formas de acesso planejado ao solo urbano. No Brasil, com o advento da Constituição Federal de 1988 foi inserido pela primeira vez na história constitucional do país, um capítulo sobre política urbana balizado no atendimento à função social da propriedade. Esse capítulo constitucional foi regulamentado por uma lei-marco fundamental, a Lei nº 10.257/2001, denominada “Estatuto da Cidade”. De igual modo, na Colômbia, com o advento da Constituição Federal de 1991, um novo regime constitucional urbanístico foi inaugurado, incorporando a noção de função social da propriedade e a redefinição do conteúdo deste direito. Em 1997 foi editada a Lei nº 388, denominada “Lei de desenvolvimento territorial”, na qual se afirma uma preocupação clara com planejamento territorial em suas distintas dimensões, articulada a gestão do solo ou intervenção no mercado da terra e no desenvolvimento econômico e social. (CAPELLO, María Mercedes Maldonado. El processo de construcción del sistema urbanístico colombiano: entre reforma urbana y ordenamiento territorial. in FERNANDES, Edésio e ALFONSIN, Betânia (coord.) Direito Urbanístico. Estudos brasileiros e internacionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 25-58).

Nesses países, o conjunto de direitos sociais previstos na constituição e na legislação infra-constitucional, estruturados na função social da propriedade e da cidade, passou a constituir um novo ramo do direito público denominado “direito urbanístico”. Esse direito tem como objeto a promoção do controle jurídico dos processos de desenvolvimento, uso, ocupação, parcelamento e gestão do solo urbano, em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental.

Dentre as diretrizes gerais do direito urbanístico brasileiro, previstas na Lei nº 10.257/2001 (Estatuto da Cidade), encontra-se a “gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano.”

No direito brasileiro, portanto, a participação popular na formulação, execução e acompanhamento da política urbana passa a ser um princípio expresso e fundamental de legitimação da atividade administrativa nesse setor. O espaço público passa a ser o local de deliberação das políticas públicas urbanísticas. Essa noção de espaço público vinculado à legitimação democrática do Estado é aquela formulada por Jürgen Habermas, como sendo “a estrutura intermediária que faz a mediação entre o sistema político, de um lado, e os setores privados do mundo da vida e sistemas de ação especializados em termos de funções, de outro lado.” (Direito e Democracia: entre facticidade e validade, volume II. tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 107.)

Exatamente sob esse aspecto, da participação popular para proteção da legalidade urbanística, Inés D´Argenio comenta a decisão da Câmara de Apelação no Contencioso Administrativo e Tributário da cidade de Buenos Aires (Sala II), que afastou a consolidação de uma transgressão à legalidade urbanística por mero transcurso de prazo para interposição de um recurso administrativo, tendo em conta a transcendência dos bens jurídicos implicados, que se vinculam à qualidade de vida e à preservação de um meio ambiente adequado.

Segundo Inés D´Argenio, ainda que no direito argentino se estruturem sistemas normativos de participação comunitária, principalmente na Constituição da Cidade de Buenos Aires que fez da participação cidadã um eixo essencial nas distintas matérias que aborda, as normas mais avançadas em matéria de controle público da gestão administrativa urbanística se enfrentam continuamente com uma dogmática própria do direito administrativo tradicional que impede a efetiva aplicação das normas. Daí o mérito da decisão da Câmara de Apelação que restitui a “ágora”, a "criação e instituição de um espaço público verdadeiro", na exata definição de Cornelius Castoriadis (Lo que hace a Grecia 1. De Homero a Heráclito Seminarios 1982-1983 en École des Hautes Études en Sciences Sociales, París, Editado por Fondo de Cultura Económica, Buenos Aires, 2006).

Leia a decisão e o comentário

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